Darcy
Ribeiro, ao ser designado, no Senado da República, como relator do projeto da
Câmara Federal, argüiu a inconstitucionalidade de alguns de seus dispositivos
RESUMO
Os autores deste artigo fazem uma reflexão sobre a proposta de
ensino técnico-profissional materializada no decreto 2.208/97. Mostram, ainda,
o desmonte desta modalidade de ensino no país. Discutem, também, o
descompromisso do Poder Público com a educação em todos os níveis, o que
representa a destruição do sistema de produção da ciência e tecnologia,
reforçando a condição periférica em que o Brasil está inserido no mundo do
trabalho.
Palavras-chave:
educação e trabalho, educação profissional, ensino técnico, política de
educação profissional.
RÉSUMÉ
Les auteurs de cet article font une
réflexión sur la proposition d’ enseignement técchnique – professionnelle
matérialisée dans le décret 2.208/97. Lis démontret la défeite de cette
modalilé d’enseignement dans le pays. Discutent, aussi, la manqne d’engagement du Pouvoir
Publique par rapport à l’éducation en tous les niveaux, qui niveaux, représente
la détruction du système de production de la science et de la technologie en
renforce la condition périphérique (dont laquelle le Brésil est inséré dans le
monde du travail.
Lés mots-clefs: éducation et travail, éducation professionnelle,
enseignement, politique d’éducation professionnelle.
O
propósito deste texto é refletir a proposta de ensino técnico-profissional,
regulamentada pelo Decreto do Executivo nº 2.208/97. Dos dois projetos que
disputavam a hegemonia na educação brasileira – o projeto da Câmara Federal e o
projeto do Senado da República – apenas o segundo, por imposição das forças do
capitalismo internacional, foi aprovado.
O projeto gestado na Câmara Federal
contou, na sua elaboração, com a ampla participação da sociedade civil. Já o
projeto do Senado da República, seguindo uma tradição histórica na elaboração
da legislação da educação nacional, não acatou, na sua totalidade, as propostas
pensadas pelas entidades de classe,
materializadas no projeto da Câmara Federal.
E por que o projeto de lei, construído
pelas forças populares, não foi aprovado? Era extenso, tinha defeitos de
conceituação, de temas pontuais ou de técnicas legislativas? Darcy Ribeiro, ao
ser designado, no Senado da República, como relator do projeto da Câmara
Federal, argüiu a inconstitucionalidade de alguns de seus dispositivos. Vejamos
seus próprios termos:
No
que se refere ao projeto de Lei da Câmara nº 101, de 1993, incumbe-nos alertar
para as dificuldades instransponíveis
no campo da constitucionalidade. Com efeito, encontramos não apenas um ou outro
artigo inconstitucional, o que poderia ser sanado por emendas do Relator, mas
constatamos estar o Projeto, em inúmeros dispositivos de quase todos os
capítulos, totalmente eivado de inconstitucionalidade”. ( Senado Federal,
1993, p. 43.
Na realidade, o projeto de lei de
orientação popular contrariava interesses, não só dos empresários do ensino,
mas também dos organismos internacionais de cultura e de financiamento (UNESCO,
FMI, BM). Nesta bipolaridade de intenções é que se constrói a proposta de
qualidade total que, em última análise, objetiva a realização plena da
mercadoria.
No que diz respeito ao ensino
técnico-profissional, este historicamente foi um ensino voltado para os menos
favorecidos socialmente, para os órfãos e desvalidos da sorte. É com a Carta
Magna de 1937 que se constitui o ensino primário profissionalizante reservado
às classes populares.
O intenso crescimento industrial do país
passou a reivindicar mão-de-obra “qualificada”, o que culminou com uma série de
reformas educacionais, dentre elas a Reforma Campos (1932-1936) e a Reforma Capanema (1942-1946) que normatizou o
ensino primário, secundário, industrial, normal e agrícola.
O objetivo do ensino secundário, na
Reforma Capanema, tinha como principal finalidade “formar as elites condutoras do país” e o objetivo do ensino
profissional era o de oferecer “formação
adequada aos filhos dos operários, aos desvalidos da sorte e aos menos
afortunados, aqueles que necessitavam ingressar precocemente no mundo do
trabalho”. Vê-se, pois, que a herança dualista não só perdurava, mas também
era explicitada.
Junto com estas leis é criado o SENAI,
com o incentivo do Governo Federal, que pretendia institucionalizar um sistema
nacional de aprendizagem, cujas despesas deveriam ser das próprias empresas
para atender às suas necessidades.
Como se pode observar, o ensino
profissional, já naquela época, destinava-se às camadas mais pobres da
população, pelo seu caráter terminal, o que inviabilizava o acesso ao ensino superior das classes mais pobres.
Em 1961, com a promulgação da primeira
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (4.024/61) mantém-se a mesma
estrutura de ensino proposta pelas Leis Orgânicas, mas com uma diferença:
teriam acesso ao vestibular os estudantes de qualquer curso e possibilitava aos
alunos a transferência de um curso para outro. Isso foi o resultado das lutas
das camadas populares que exigiam reformas de base não só na sociedade, mas
também no campo educacional.
Com a Lei 5.692/71, tentou-se romper com
a dualidade até então existente, substituindo os ramos propedêutico e
profissionalizante por um sistema único, ao qual todos teriam a oportunidade de
acesso, independentemente da origem de classe, embora não tivessem garantida a
permanência.
Na prática, o ensino continuou dual; muitas
escolas, principalmente as da área privada, não elaboraram o seu projeto
educativo preconizado pela Lei 5.692/71. E por que não deu certo? Porque o
próprio Estado negou a Teoria do Capital Humano. Ou seja, não construiu
escolas, não equipou as já existentes, não
qualificou
os professores para as disciplinas profissionalizantes de algumas habilitações,
etc. Como nos diz Warde (1983, p. 83) “a
reforma do ensino do 2º grau acabou por não concretizar a sua função não
manifesta de conter as demandas ao ensino superior”
Com relação ao ensino técnico-profissional
da Lei nº 9.394/96, embora o atual
governo tivesse tratado a questão do ensino médio e do ensino técnico no texto
Planejamento Político Estratégico (1995), foi somente no mês de maio de 1996,
que o MEC apresentou o seu projeto de reforma do ensino técnico-profissional
que, ao dar entrada da Câmara Federal, transformou-se em lei, recebendo o nº.
1.603/96.
Com a aprovação da Lei nº. 9.394/96,
imediatamente o governo retirou seu projeto e, de maneira autoritária, emite um
texto similar, em termos de conteúdo, ao
da Lei 1.603/96. Este texto foi transformado em decreto e recebeu o nº
2.208/97. Com essa atitude, o executivo traça uma política educacional
profissional fragmentada e anacrônica:
“O anacronismo da atual regulamentação do
ensino profissional será agravada com a proposta de modularização (...) os
alunos poderão cursar módulos em diferentes momentos e instituições, recebendo
o respectivo diploma assim que concluírem o último módulo e na mesma instituição
cursada...” (MARTINS, 2000:85).
Não temos dúvida nenhuma em afirmar que o
modo como foi regulamentado o ensino técnico-profissional se encontra em
perfeita sintonia com a ordem econômica vigente, uma vez que os países
subdesenvolvidos, como o Brasil, aceitam a submissão imposta pelas agências
internacionais no tocante à formulação de políticas públicas para a educação
brasileira.
E por que muitos estudiosos, quando
analisam o conteúdo do Decreto 2.208/97, afirmam ser o mesmo anacrônico? E o que
significa ser anacrônico? Recorrendo ao dicionário de Aurélio Buarque de
Holanda, ele nos diz que anacrônico significa “que está em desacordo com a moda, o uso, constituindo-se atraso em relação a eles, retrógrado” (p.41).
O anacronismo do Decreto nº 2.208/97
reside no fato de que ele separa a ciência
da técnica, ou seja, o saber do fazer, não proporcionando ao trabalhador condições para que se
forme como um sujeito crítico, participativo e atuante, no sentido de
adaptar-se às novas exigências das forças produtivas, quais sejam a ciência e a tecnologia. É como salienta Martins (2000, p.91) “A intenção da educação expressa no Decreto nº 2.208/97 (...) não é a de produção do
conheciemnto, mas de sua simples aplicação”
E qual a concepção subjacente ao referido decreto? A concepção
é taylorista/fordista.
Ou seja, o trabalhador vai continuar executando tarefas que serão pensadas nos
escritórios de planejamento, ficando o trabalhador, mais uma vez, com o domínio
restrito de uma parte do processo produtivo, transformando as suas atividades
em gestos mecânicos. Em outras palavras: existe uma divisão entre homem que
pensa e o que faz, entre humanismo e técnica.
“As propostas do Decreto 2.208/97 atendem a uma realidade
econômica que vigorou até a década de 1980 e hoje inexiste pela própria dinâmica do
modo de produção capitalista, que aponta, na formação de trabalhadores, na
direção de uma integração entre ensino
profissional e propedêutico (...)” (idem, p.84).
O que o autor acima mencionado quer dizer é que esta nova
organização do trabalho exigirá do trabalhador habilidades tanto de natureza
operacional quanto conceitual. Em outras palavras: exigirá uma mudança de
concepção de tarefa, não mais um aprendizado por operações repetitivas,
mecânicas, mas requerendo formas mais abrangentes de aprendizagens, onde o ato
de pensar deve presidir o ato de executar.
É uma clara aceitação de inclusão do país no processo
econômico intitulado de globalização por subordinação, uma vez que não permite
aos educandos o domínio da ciência e tecnologia e, por conseqüência, transforma
cidadãos em súditos, alunos em clientes (servos). Reforça a divisão
internacional do trabalho onde os países intitulados de Primeiro Mundo pensam a
produção das mercadorias e os países intitulados de Terceiro Mundo apenas
executam a produção.
A materialização da referida divisão internacional do
trabalho, e ainda da divisão interna (regional) do trabalho é materializada na
proposta de cursos fundados na modularização. É inegável a necessidade de
qualificação e requalificação de trabalhadores que se encontram fora da escola
e do mercado formal de trabalho. Entretanto, cabe à escola, também, preparar o
cidadão para a vida.
“... a fragmentação em módulos
constitui-se em mais um exemplo do atraso do decreto em relação à realidade
produtiva, uma vez que não proporciona ao trabalhador a capacidade de entender
o processo o que possibilitaria assimilar as alterações que se processam e
acompanha-las” (idem, p.85).
Esta proposta de ensino através de módulos contribuirá na
destruição do conjunto das escolas
técnicas federais que, historicamente, vêm desempenhando não só uma proposta de
ensino profissionalizante, mas também propedêutico. Esta assertiva pode ser comprovada
com a instituição dos chamados CEFETs. Ao invés de se estabelecer uma política
para o fortalecimento das referidas escolas, impõe-se, através de decreto,
mudanças profundas que atrasam, mais uma vez, o ensino profissional no Brasil.
“A par das escolas e de
seu caráter propedêutico, voltadas para a formação dos dirigentes que não se
constituiu em especialistas ou profissionais, criam-se escolas voltadas para o
desempenho de funções instrumentais exigidas pelos diferentes ramos
profissionais” (Kuenzer, 1997, p. 33).
E o que é preparar o cidadão para a vida? É viabilizar o
desenvolvimento integral de todas as sua dimensões: neorumusculares, políticas,
técnicas, científicas e culturais. É a substituição, na teoria e na prática, da
histórica formação polivalente por uma nova formação politécnica. Isto
significa dizer que a educação não pode manter-se como acadêmica ou
profissionalizante. Essas duas vertentes dicotomizadas, no entendimento dos
autores deste estudo, formam o homem parcial, limitado e até anacrônico.
A própria revolução técnico-científica supera rapidamente as
especializações tradicionais, passando a exigir seres com sólida cultura geral
e tecnológica, capazes de dominar processos produtivos complexos.
A formação polivalente, como proposta dos organismos
internacionais de cultura e de financiamento, apresenta-se ao trabalhador como
única via de acesso aos conhecimentos indispensáveis à profissionalização,
qualificação, ou requalificação da mão-de-obra para o mercado de trabalho.
Dizendo de outra maneira: ela visa preparar o indivíduo para a execução de
determinadas tarefas pensadas por terceiros. Da mesma maneira pensa Rummert
(2000).
“Educação
polivalente (...) o objetivo é o de preparar o trabalhador para a execução de
tarefas diferenciadas necessárias à reprodução e ampliação do processo de
acumulação capitalista” (p.172).
Em substituição ao projeto
educativo fundado na polivalência existe uma outra proposta – a politécnica – cujo trabalho passa a ser
instrumento epistemológico que proporciona ao trabalhador acesso aos
conhecimentos científicos, levando-o a compreender não apenas a sociedade onde está inserido, como também
ser questionador destes conhecimentos e desta sociedade, objetivando, além de
entendê-la e descrevê-la, transformá-la. Para que este objetivo se concretize é
indispensável a união entre trabalho e educação.
“... a
educação politécnica (...) se apresenta como a oportunidade de desenvolvimento
integral do homem que, adquirindo plena consciência do processo de trabalho que
desenvolve, passa a dominá-lo (...) O trabalho deixa de ser o objetivo restrito
da formação, para transforma-se em instrumento epistemológico que propicia o
acesso aos conhecimentos à compreensão científica dos processos, das técnicas
e, também, das relações socialmente produzidas. (Rummert, 2000, p. 173).
A vantagem, portanto, da educação politécnica sobre a educação
polivalente, do ponto de vista da classe trabalhadora, é que o indivíduo passa a ter uma visão total do processo
societário que abrange o político, o econômico, o técnico, o científico e o
cultural, o que viabiliza uma compreensão que vai além do trabalho até o
conhecimento do seu valor econômico, histórico, sociológico filosófico e
antropológico.
Dizendo de outra forma: o trabalhador politécnico não sabe
tudo, mas teria o conheciemnto do todo. Essa concepção está de acordo com a
dialética materialista histórica de que o ensino não deve ser orientado para
uma profissão específica o que reduz o homem a um mero apertador de parafuso,
pois, na opinião de Marx (1966), o mais importante é utilizar o progresso
técnico para a formação total (omnilateral)
do homem.
Em síntese, podemos afirmar que a proposta de educação
técnico-profissional materializada no Decreto nº. 2.208/97 é não só
ultrapassada, do ponto de vista da ciência, mas também retrógrada do ponto de
vista de formar para a cidadania. Neste projeto educativo o aluno ingressa na
escola como ser humano e sai andróide.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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